April 04, 2020

Notas da quarentena

- Planejo substituir o espelho do quarto pelo quadro do coração.
- Planejo tirar o quadro-colagem do casal-peixe daqui.
- Planejo terminar a leitura de 'Chelsea Girl' – faltam 100 págs.
- Planejo concluir a escrita do poema-livro. Por causa disso, espalhei mapas pela sala.
- Tenho lido bem menos do que imaginaria.
- Escrevo, publico e apago meus instantes imediatamente.
- O tédio e o tesão estão conjugados.
- Oscilo entre a euforia e o sono.
- ‘Eu sempre oscilei’.
- Fudi duas vezes.
- Procrastino os esquemas pragmáticos.
- Faço contas com a grana escassa.
- Penso nas pessoas encarceradas. Hoje teve uma live com Denise – poucas pessoas viram.
- Desisto de ler para a câmera ‘O livro de hoje do amor’ e ‘Rabiscos de uma intimidade anunciada’.
- Quero trocar a cortina e a cor do sofá, faço planos.
- Angela me conta um sonho. Respondo: Angel, parece David Linch tropical. Signos que escorreram nas minhas sinapses: elevador, crianças no final da narrativa, o homem negro, canos. Tem um trânsito permanente, né? Lição que acontece numa verticalidade. Um elevador, diferente de uma árvore, seria um anti-horizonte? O sonho começa burocrático e termina com promessa de futuro.
- Mônica me explica a configuração do céu. Até hoje não respondi sua mensagem. Sorry.
- Vejo muitas borboletas no verde vizinho daqui de casa.
- Saio três vezes durante a semana para ir ao mercado.
- Sonho com uma rua perigosa em Itapuã.
- Ligo quase todos os dias para mama. Ela me manda a voz dela lendo o texto das perguntas publicado em um dos posts no insta.
- Sara me manda mil mensagens incentivando a hashtag fica em casa e a voz de Bia falando o poema do escuro, inventado por ela. Fico bobo.
- Cibele, preocupada, me envia um áudio – ‘Tá se cuidando, amigo?’. ‘Sim, tá tudo bem, bom ouvir sua voz’, respondo.
- Gabriel, preocupado, me envia uma mensagem. Digo ‘oi, sim, se cuida, vamos escrever um livro, manda beijo para Ana’.
- Ana, da África, me faz rir e fotografa uma picture de um cara parecido comigo. Joaquim tá bem. Viva!
- Corro riscos. Tenho sequelas, agora percebo.
- Meus segredos ficam se esfregando em minha cara.
- Fabrico um planner e rasgo.
- Escrevi uma carta para Diogo.
- Escreverei uma carta para Marina.
- Acordei cansado de madrugada e penso melodramático – sou mais uma vítima.
- Escuto a discografia de Martinho da Vila, Titãs e Paulinho da Viola.
- ‘Aos prantos’ está no repeat.
- Não canso de ouvir-dançar o frenesi da canção ‘The dogs are over’.
- Fiz quatro sessões de análise pelo telefone.
- Penso nos cachorros que precisam sair de casa com seus donos que precisam ficar em casa.
- Penso naquele texto que escrevi sobre calma.
- Penso no mar respirando.
- Penso especialmente no Porto da barra respirando.
- Penso em fazer um vídeo com Gil cantando 'Ele e eu'.
- Penso na natureza crescendo sem as interferências de nossos pés.
- Tem dias que como muito.
- Tem dias que como muito pouco.
- Li textos de pessoas compartilhando esse lance de procrastinar.
- Li todos os poemas do livro 'Nódoa'.
- Li todos os poemas pornográficos de 'Cidade dos afetos'.
- Li a boneca de 'Reza'.
- Li textos avulsos de amigos.
- Limpo a casa quase todos os dias.
- Escrevo um texto com um dos Léos de my life.
- Escrevo fluxos com os babysloves Lau e Marcinho.
- Escrevo com Di frases-estratégias para ficar em casa.
- Planejo escrever um ensaio com Ramon sobre muitas atmosferas virais.
- Ainda não limpei a poeira embaixo da máquina de lavar.
- Ainda não limpei a poeira embaixo do guarda-roupa.
- Ainda não limpei a caixa de entrada do meu email.
- Ainda não arrumei os talheres.
- O boy não veio outra vez.
- Um outro boy disse que viria depois que tudo acabar.
- Lavei poucas roupas.
- Esqueci de estender os lençóis. Farei isso agora.
- Decido responder os emails burocráticos antes das oito.
- Decido assumir a casa como um ateliê de escrituras.
- Sinto falta de Lurdes.
- Sinto falta de ir ao cinema.
- Assisti ‘Hebe’.
- Tenho querido construir uma ontologia de floresta para meu corpo.
- Qual a minha verdade?
- Qual minha anti-mímesis?
- Acordo todo dia muito cedinho, mas só eventualmente levanto quando acordo.
- Tenho colocado sementes de girassol para germinar.
- Bebo o suco verde-alegria manhã sim manhã não.
- Molho as plantas tarde sim tarde não.
- Fico contemplativo sim contemplativo não.
- Pergunto sem ansiedade sobre o depois.
- Pergunto com ansiedade sobre o agora.
- Bebi uma lata de cerveja.
- Fiz um molho de tomate com muito alho poró.
- Pulei corda algumas vezes.
- Hesito se devo publicar essa lista de notas.
- Tomei banho de cravo.
- Fui correr, na terça-feira, até o porto.
- Ganhei receitas de esfoliação natural para o rosto.
- Hidratei meu corpo com argila verde. Planejo fazer isso amanhã outra vez.
- Algumas pessoas insistem em publicar o pessimismo de uma modernidade escrita em 'Congresso internacional do medo'.
- O gás acabou no meio de tudo isso.
- Comprei um pote de açaí.
- Perguntei à menina do mercado se o mercado vai fechar algum dia. Ela balançou a cabeça negativamente.
- E as diaristas não dispensadas pela patroa?
- Houve panelaço-manifestação contra a necropolítica escancarada do miliciano (minhas amigues ficaram esparançosas).
- Mandei uma mensagem para meu ex-namorado.
- Voltei aqui depois de um tempo para publicar esse texto.
- Acho que Tapioca tá sem entender: eu horas a fio com ela – nossas temporalidades se lambendo num cotidiano mais que cotidiano.
- Cada vez mais entendo que corre nas nossas veias sangue e contradição, mas cada vez mais entendo um não querer abrir mão de uma ética, ainda que entre em circuitos mais radicais.
- Agora eu estou gostando de ficar assim nesse tempo dilatado.
- Acho arriscado pensar esse momento apenas pelo viés místico.
- Nunca a territorialização e a desterritorialização de corpos, casas, ruas, países, democracias e olhos estiveram tão experienciados.
- Estou meio alienado.
- Desconfio de posicionamentos altamente auto-referenciados.
- Opto, uma vez ou outra, por uma radicalidade estratégica.
- Nunca o virtual e o real se cruzaram tanto. Nunca a ficção e a realidade estiveram tão pareadas.
- Volto a Espinosa para relembrar a lista de afetos copilados por ele.
- Escrevi, em letras minúsculas, um texto para Laura depois da minha experiência com ‘mina dágua do meu peito’. Em seguida, ela me diz que sonhou comigo nessa noite e na semana passada. Fico espantado com nossa transa astral.
- Gil leu um poema de uma música esquecida chamada 'Academia'. Fico espantado com a profecia:
A cada epidemia
A cada epicatragicômica mania
De abusar o mudo
Absurdo e cego
Querer que o mundo recite poesia
Academia
A cada epidemia
A cada novaepidérmica mania
De querer mais tudo
Sobre mais que tudo
Como se tudo não fosse todo dia
Academia
A cada epidemia
A cada epidemia nova
Eu volto imediato pra Bahia
- Bete publicou um tbt de janeiro passado quando ela e duas outras artistas construíram máscaras-respiradores vegetais. É bonito o texto da postagem escrita por ela: ‘Imaginamos um explorador-astronauta-mergulhador vindo de outro tempo. Um tempo em que aprendemos compor com outros seres, criando outros modos de viver e morrer juntos nesse planeta’.
- O futuro é agora.
- Fiz um vídeo dançando com Tapi e uma folha.
- Marília leu ‘O dia internacional da poesia em casa’. A leitura dela e o poema trazem um riso porque faz uma ternura no meu peito.
- Faço muitos prints de poemas, boys, casas e girafas.
- Nunca minha casa esteve tão latente na minha idiorritmia.
- Retorno à escrita de um poema antigo.
- Retorno à mesa de estudos.
- Estou mais atento aos sonhos, mas ainda não os escrevo.
- Comi bolo chuvisco ontem.
- Desde ontem, o céu é cinza.
- Quero correr na orla.
- E as baianas de acarajé?
- Quero prestar mais atenção nas vibrações das coisas.
- Quero abrir o corpo.
- Quero fechar o corpo.
- Quero ser forte.
- Quero ser fraco.
- Escrevo para Di: ‘amar, desistir, amar ad infinitum – porque não sou de ferro’.
- Lembrei da roupa vermelha que vesti dois dias antes da quarentena – uma calça adidas vermelha que custou quatorze contos compunha o look.
- Tem uma invasão de micro formigas na casa.
- Eu te mostrei a música-declaração que não fiz antes de vc ir. Vc me confessou os seus vacilos. Eu confessei as minhas idiossincrasias. Não chorei dessa vez.
- Essa semana faz um ano que aconteceu aquele choro-tempestade-cura.
- Dei voltas e voltas e voltas no último telefonema.
- Estou no inferno astral, mas me esqueço disso.
- Domingo acontecerá festinha das minhas 38 voltas no planeta uau – é sempre um espanto mais um year old na contagem diacrônica. Vai rolar bolo de chocolate e pão artesanal.
- Acho que minhas mãos envelheceram.
- Escutei Wandula depois de tanto tempo.
- Tô fazendo ioga com Bete e Sthefferson.- Alongo e respiro para lubrificar as algas do meu corpo.
- Anotei isso hoje: cultivar meu corpo radiante e meu corpo físico ao mesmo tempo.
- Nota de rodapé – Texto para Laura:
laurinha, acordei cedinho – quatro da madruga. vi o céu amanhecer. a rotina e o humor oscilam nessa tragada do mapa do nosso tempo astral. li agorinha mina dágua do meu peito – sua safona-onda – sua reza-reverência – é onda – é onda branda – é política de delicadeza, te cito – eu li agorinha no amanhecer. a temperatura de sua aquanatureza fez um cruzamento com a temperatura da minha aquanatureza: nossa idiorritmia. babylove, você espalhou água com sua fala – sua força – sua feminilidade – sua vulva - suas mães ancestrais. você fez uma maré no sofá azul daqui de casa. você minou e fertilizou água no meu colo e nos meus pés – vou voltar e ir e. tomei banho de cravo ontem. tomei banho de água do seu cheiro-maré hoje. p r e s e n ç a do corpo soul norte. minhas próximas horas serão guiadas pela ressaca desse gole de mar.
- Outra nota de rodapé – o Poema de Bia:
uma foto de palhaço
lá no escuro
todo feito
lá no escuro
todo está
lá no escuro
você pode imaginar
monstro do escuro
monstro do guarda-roupa
você pode imaginar tudo
assustador
lá no escuro
- Mais uma nota de rodapé – o poema do livro ‘Nódoa’ de Bobby Baq:
Usar os dedos
no lugar das pernas
para percorrer pessoas
enquanto busco nelas
a própria linha de chegada.Usar os dedos
no lugar da pernas
e deixar somente a impressão
ao invés de deixar a pegada.
- Última nota de rodapé – texto-postagem publicado no insta:
sente o drama, baby | o filtro tirou as linhas da minha testa | qual título de livro vc acha curioso? | vc ainda escreve cartas? | apareceram muitas borboletas por aí? | qual o seu melhor close na quarentena? | pergunta e segredo de liquidificador | qual quer pergunta | qual a última canção vc bebeu? | vc mata formigas? | vc insiste qdo parece que não te dão bola? | vc gosta de barba e lâminas? | vc já cortou seu próprio cabelo? | vc escutou aos prantos? | qual a última vez que vc gozou? | vc já percorreu o corpo de alguém com seus próprios dedos-coração? | vc gosta de chiclete, farinha, chá? | vc sonha caindo? | vc quer um biscoito? | vc sabe de vocêzinho? | vc pulou a cerca, o gap, a fogueira? | vc cintila no escuro? | vc já teve um blog ou um sapo? | vc conhece o significado da quartzo azul? | quantas vezes vc disse adeus? | por quantos buracos vc já se meteu? | vc já comeu terra? | vc conhece itapuã? | o que te saliva? | o que te vicia? | o que te sustenta? | pergunta | o que vc quer saber de verdade??

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